quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Temos o direito de interromper a gestação?

Artigo - Luís Paulo Sirvinskas

Folha de S. Paulo

Permitir a interrupção da gestação de feto anencéfalo é um precedente perigoso: abrirá as portas ao aborto em geral. Temos tal direito?

O CASO específico da menina Marcela de Jesus Galante Ferreira, que teve uma sobrevida superior à expectativa médica (um ano e oito meses), não deve servir como único fundamento contra a interrupção de gestação do feto anencéfalo. Há muitos outros.
A anencefalia é a falha do fechamento do tubo neural causada por problemas genéticos e ambientais no primeiro mês da concepção. A má-formação do cérebro não implica a má-formação dos outros órgãos. Há caso de gestante que resolveu ter o filho para, logo depois, doar os órgãos. Isso não significa, sob o ponto de vista científico, ausência de vida.
O amor que a gestante tem por seu filho é único, seja esse filho perfeito ou não. O amor de mãe não se desfaz pelo fato de o filho não possuir uma formação adequada. Ela não tem o direito de decidir sobre a vida e a morte de seu filho, pois ele não lhe pertence.
Ela deverá concebê-lo para o mundo, e não para si mesma.

A vida é protegida pela Constituição Federal (artigo 5º). Sabemos que todos os direitos têm caráter relativo.
Nada é absoluto. Tampouco a vida.
Admite-se, em caso de guerra, a pena de morte (artigo 5º, XLVII, a).

No entanto, a vida de um anencéfalo também deve ser protegida, assim como a de um embrião. Cada qual com suas peculiaridades. Trata-se de um direito inalienável. Permitir a interrupção dessa vida é praticar o crime de aborto (artigos 124 a 128 do Código Penal).
Aqueles que acreditam que essa vida, por ser inviável, não pode prosseguir, se respaldam no princípio da dignidade da pessoa humana. Caso se abra esse precedente, será também possível interromper a vida daquele que sofre um acidente e se torna paraplégico? Essa pessoa estaria confinada a viver numa cadeira de rodas o resto de sua vida, dependente de outra. Não haveria nenhuma perspectiva de melhora. Estamos falando de eutanásia ou ortotanásia.

E, a pretexto de querer ser solidário ou se compadecer com o "sofrimento alheio", deve-se concordar com a interrupção da vida daquele que, de qualquer maneira, iria falecer?
Qual é o real motivo dessa interrupção? Estamos dispensando o feto para proteger a saúde da mãe? Será que temos o direito de decidir o que seria melhor para o outro?
Podemos, como se vê, destruir a vida de um embrião a pretexto da melhoria de vida de pessoas que possuem alguma doença degenerativa?

Podemos, dessa forma, interromper a vida de um feto anencéfalo para evitar danos à gestante ou interromper a vida de um moribundo que esteja internado com morte cerebral?
A proteção da vida não pode ser analisada apenas sob o ponto de vista religioso, mas também científico.

Há vários trabalhos científicos, apresentados em congressos e seminários médicos, que demonstram que as seqüelas causadas à gestante após a interrupção da gestação do feto anencéfalo é maior do que se imagina.

Na qualidade de promotor de Justiça, deixei de dar parecer favorável em um caso semelhante por convicção pessoal. Não me sentiria à vontade para defender a vida em certas situações e, em outras, permitir sua interrupção. Todos têm direito à vida, por mais rudimentar que seja, independentemente da religião.

Apesar de o Brasil ser um Estado laico, ciência e religião caminham juntas. O Estado deve, sim, intervir para proteger a vida e não deixar nas mãos de alguém que não teria condições psicológicas, naquele momento, para decidir tão delicada questão, exceto se houver risco iminente de morte da gestante.

Às vezes, não é nem a própria gestante quem decide realizar a interrupção da gestação do feto anencéfalo. Porém, após a prática de tal ato, a gestante poderia entrar em profunda depressão, o que poderia levá-la ao suicídio.

Diante disso, será que Deus não nos deu a inteligência para que possamos fazer bom uso dela? Será que podemos tirar a vida de alguém -qualquer que seja sua situação? Vida esta que teve a oportunidade de nascer e viver? E que teria cumprido seu destino, ainda que parcial?

Permitir a interrupção da gestação do feto anencéfalo com base na dignidade da pessoa humana é abrir um precedente perigoso. Esse precedente, assim como a decisão que permitiu a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas e terapia, abrirá as portas para o aborto em qualquer hipótese. Será que temos esse direito?

LUÍS PAULO SIRVINSKAS , 52, mestre e doutor em direito pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), é promotor de Justiça em São Paulo.

http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=453310