terça-feira, 5 de agosto de 2008

Se o embrião humano fosse pessoa...

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510 (ADI 3510), que declarou constitucional a destruição de embriões humanos para fins de pesquisa e terapia (conforme previsto pelo artigo 5º da Lei 11.105/05 – Lei de Biossegurança), o argumento chave usado pelo relator Ministro Carlos Ayres Britto é que, segundo ele, perante o ordenamento jurídico brasileiro, o embrião humano não é pessoa.

O Ministro admitiu explicitamente que “o início da vida humana só pode coincidir com o preciso instante da fecundação de um óvulo feminino por um espermatozóide masculino” [1]. O zigoto humano, porém, não é pessoa simplesmente “porque assim é que preceitua o Ordenamento Jurídico Brasileiro”[2].

E se zigoto humano (e, por extensão, o embrião humano) fosse pessoa? Se assim fosse, diz o Ministro, todo e qualquer aborto seria inconstitucional, inclusive aquele praticado quando não há outro meio para salvar a vida da gestante (art. 128, I, CP) e aquele praticado em gravidez resultante de estupro (art. 128, II, CP). Segundo ele, a proibição do aborto não significa “o reconhecimento legal de que em toda gravidez humana já esteja pressuposta a presença de pelo menos duas pessoas: a da mulher grávida e a do ser em gestação”. Leiamos com atenção como prossegue o Ministro: “Se a interpretação fosse essa, então as duas exceções dos incisos I e II do art. 128 do Código Penal seriam inconstitucionais, sabido que a alínea a do inciso XLVII do art.5º da Magna Carta Federal proíbe a pena de morte (salvo ‘em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX’)”.[3]

Note-se a enorme importância que o relator dá à afirmação de que o nascituro não é pessoa. Notem-se ainda as conseqüências que ele prevê caso a Constituição reconhecesse a personalidade do nascituro. Se assim fosse, diz ele, os dois casos de aborto em que não há aplicação de pena (e que o Ministro chama impropriamente casos de “aborto legal”) seriam inadmissíveis.

* * *

À mesma conclusão chega Ronald Dworkin, ardente defensor da sentença Roe versus Wade, que em 1973 declarou constitucional o direito ao aborto nos EUA. Segundo esse pensador (que, aliás, é citado no voto de Carlos Ayres Britto), essa decisão da Suprema Corte norte-americana baseia-se fundamentalmente sobre a tese de que a criança por nascer não é pessoa. Repetidas vezes em seu livro “Domínio da vida”[4], o autor afirma que, se o nascituro (que ele costuma chamar de “feto”) fosse pessoa, o aborto seria inadmissível em todos os casos, inclusive em “estado de necessidade” ou em caso de gravidez resultante de estupro. Leiamos algumas de suas passagens: “Em termos morais e jurídicos, é inadmissível que um terceiro, como um médico, mate uma pessoa inocente mesmo quando for para salvar a vida de outra” (p. 131). “Do ponto de vista de que o feto é uma pessoa, uma exceção para o estupro é ainda mais difícil de justificar do que uma exceção para proteger a vida da mãe. Por que se deve privar o feto de seu direito a viver e obrigá-lo a pagar com a própria vida [por] um erro cometido por outra pessoa?” (p. 132). Criticando aqueles que não aceitam o aborto quando o bebê foi fruto de uma relação sexual voluntária, mas o aceitam quando ele foi concebido em um estupro, o autor afirma: “Sem dúvida, a diferença não seria de modo algum pertinente, como afirmei, se o feto fosse uma pessoa com direitos e interesses próprios, pois tal pessoa seria completamente inocente a despeito de qual fosse a natureza ou a intensidade da culpa de sua mãe” (p. 134).

Pelo que se percebe, o ponto vulnerável dos abortistas, o seu “calcanhar de Aquiles”, é a personalidade jurídica do nascituro. Demonstre-se que nascituro é pessoa e todo o edifício abortista desaba, inclusive a permissão de destruir embriões humanos para fins de pesquisa.

Mas o embrião humano é pessoa! – afirma nossa Constituição.

Para alegria de todos os defensores da vida, a Constituição Federal brasileira reconhece a “todo ser humano” (sem distinções) o direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica. Onde isso está escrito?

Não está escrito no corpo da Constituição, tal como nós a conhecemos. Trata-se de um texto de um tratado internacional de direitos humanos, assinado e ratificado pelo Brasil, e que goza do “status” de norma constitucional, que faz parte do bloco de constitucionalidade, segundo recente entendimento do Supremo Tribunal Federal, em particular, do Ministro Celso de Mello, em seu voto-vista de 12 de março de 2008, no Habeas Corpus 87.585-8 Tocantins.

Refiro-me à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, subscrita em 22 de novembro de 1969, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica. Tal Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional do Brasil em 26 de maio de 1992 (Decreto Legislativo n. 27), tendo o Governo brasileiro determinado sua integral observância em 6 de novembro seguinte (Decreto n. 678). Segundo Celso de Mello, essa Convenção constitui “estatuto revestido de hierarquia constitucional, por efeito do § 2° do art. 5° da Constituição da República.[5] Uma lei federal que violasse o disposto no Pacto de São José da Costa Rica seria, então, inconstitucional.

Vejamos o que dizem alguns artigos dessa preciosa Convenção:

Art. 1º, n. 2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Art. 3º. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

Art. 4º, n. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Pergunta-se: essa Convenção assegurou ou não o direito ao reconhecimento da personalidade de todo ser humano? A resposta é afirmativa, e é dada pelo artigo 3º: “Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”. Note-se que artigo 3º não faz exceção alguma a esse direito. Não está escrito “em geral” ou qualquer outra expressão que possa significar excepcionalidade. O reconhecimento da personalidade jurídica é, portanto, um direito (de nível constitucional, como foi visto) de toda pessoa, sem exceção. Mas, o que é pessoa? A essa pergunta, a Convenção dá uma resposta cristalina em seu artigo 1º, n. 2: “Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano”. A expressão “todo ser humano” engloba o ser humano já nascido, o ser humano em gestação no útero materno, mas também o ser humano originado por fertilização extracorpórea e congelado em nitrogênio líquido. Como vimos, nem sequer o Ministro relator Carlos Ayres Britto ousou negar que o zigoto é um indivíduo humano. Ora, se o embrião concebido in vitro é pessoa (e a Convenção proíbe que se negue sua personalidade), segue-se que sua vida é inviolável. Segue-se ainda que qualquer forma de aborto diretamente provocado é inconstitucional. Por conseguinte, as duas hipóteses do artigo 128 do Código Penal só podem ser interpretadas, quando muito, como excludentes da aplicação da pena (“escusas absolutórias”), jamais como uma “permissão” de abortar. E ainda: é flagrantemente inconstitucional a prática do aborto pela rede hospitalar pública nessas duas hipóteses, pois o Estado não pode atentar contra a vida de uma pessoa humana (pré-natal ou pós-natal).[6]

O que é lamentável é que esse argumento tão poderoso não tenha sido usado no julgamento da ADI 3510. Ninguém, nem a Procuradoria Geral da República (autora da ação), nem a CNBB (“amicus curiae”), nem os Ministros Menezes Direito, Ricardo Lewandowski e Eros Grau (que votaram contra a destruição de embriões humanos) afirmaram que o reconhecimento da personalidade do nascituro é um direito constitucional, por força do Pacto de São José da Costa Rica.

Contudo, isso não impede que essa arma seja usada em outras ocasiões, por exemplo, quando for julgado o mérito da ADPF 54 (aborto de bebês anencéfalos).

O Supremo Tribunal Federal atuando como legislador?

O sonho do governo Lula de legalizar o aborto está encontrando uma forte oposição da opinião pública. O Projeto de Lei 1135/91, que em sua versão atual pretendia liberar o aborto nos nove meses de gestação, foi derrotado por 33 votos contra zero em 07/05/2008, na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados. Como se isso não bastasse, o mesmo projeto foi derrotado por 57 votos contra 4 em 09/07/2008 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), apesar de todo o esforço do deputado José Genoíno (PT-SP) de impedir a votação. Os abortistas parecem estar percebendo que o Congresso Nacional não é um caminho viável para se obter a legalização do aborto. Um caminho alternativo – e muito perigoso – é o Supremo Tribunal Federal.

Nos Estados Unidos, há muito tempo a Suprema Corte cria e extingue direitos, baseando-se no subjetivismo dos juízes em interpretar a Constituição. Ronald Dworkin admite que “algumas das mais importantes decisões políticas que uma comunidade deve tomar – decisões que na maioria das outras democracias já foram ou seriam tema de grandes lutas políticas – foram decididas para os norte-americanos pelos juízes, não pelos representantes eleitos pelo povo” (p. 168). Entre essas “importantes decisões políticas” está o aborto, que foi imposto pela Suprema Corte aos 50 estados dos EUA na decisão Roe versus Wade, de 1973. Há 35 anos o povo estadunidense geme e sofre diante dessa decisão que “legalizou” o aborto à revelia do Congresso Nacional.

Quando o Supremo Tribunal Federal passa a invadir o campo do legislador, torna-se possível obter, via Judiciário, a aprovação de causas altamente impopulares, como o aborto e o casamento de homossexuais. Ao (re)interpretar a Constituição, os Ministros do STF passam a agir como psicanalistas, “descobrindo” nas profundezas do texto constitucional coisas que os constituintes jamais imaginaram. Por exemplo: o aborto de bebês anencéfalos (como pretende a ADPF 54) já estaria implícito no fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); o “casamento” de pessoas do mesmo sexo já estaria contido no princípio da igualdade de todos perante a lei (art. 5º); a prostituição e o uso da maconha já estariam implícitos no direito à liberdade (art. 5º). E assim por diante.

É fato incontroverso que a Suprema Corte brasileira, ao interpretar a Constituição, está cada vez mais atuando como legislador positivo. O presidente Ministro Gilmar Mendes antevê “que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais européias”[7]. O que ele enxerga como progresso poderá ser, na verdade, um grande retrocesso. O Brasil corre o perigo de ingressar numa era de insegurança jurídica, em que o único limite das decisões da Suprema Corte será o da imaginação de seus Ministros, todos eles nomeados pelo Presidente da República, e nenhum deles eleito pelo povo... Deus nos livre de algo semelhante em nosso país...

Rio de Janeiro, 4 de agosto de 2008

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
Telefax: 55+62+3321-0900
Caixa Postal 456
75024-970 Anápolis GO
http://www.providaanapolis.org.br
"Coração Imaculado de Maria, livrai-nos da maldição do aborto"

[1] Voto do relator, 5 mar. 2008, n. 30, p. 35. Grifado no original.

[2] Voto do relator, 5 mar. 2008, n. 31, p. 36. Grifado no original

[3] Voto do relator, 5 mar. 2008, n. 28, p. 32. Grifo nosso.

[4] DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[5] Voto HC 87.585-8 TO, 12 mar. 2008, p. 54. Os grifos são do original.

[6] Sobre esse assunto, leia-se a monografia jurídica “Aborto na rede hospitalar pública: o Estado financiando o crime”, de Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz.

[7] Voto na ADI 3510, 29 maio 2008, p. 35.