terça-feira, 11 de março de 2008

Não tem justificação

Clonar seres humanos não tem justificação

Parece que se procura a clonagem do primeiro ser humano. Perguntaram-me muitas vezes: Acredita que serão clonados seres humanos?.. E sempre, com um certo pessimismo, não isento de tristeza, respondi afirmativamente. Acho que sim. E acrescentava a minha razão: quando se une a soberba de um investigador, por ser o primeiro em alguma coisa, com a tentação económica que supõe a possibilidade de aproveitar esse alguma coisa para obter quantidades imensas de dinheiro, parece quase necessário que esse alguma coisa chegue. O que acontece é que neste caso esse alguma coisa é alguém. Um ser humano como você ou eu, mas muito, muito mais pequeno.
Não há dúvida de que produzir tecidos ou órgãos, para pacientes que deles necessitem, é algo fantástico. Se, além disso, esses tecidos criados forem compatíveis imunologicamente com os do paciente, poder-se-ia evitar o grande problema da rejeição, pelo que estas práticas médicas poderiam ser - serão! - uma grande façanha terapêutica nos próximos anos. A chamada Medicina reparadora será uma das principais opções para curar, neste século XXI em que nos encontramos.
A grande dificuldade ética é o modelo utilizado para o conseguir. Isso pode ser conseguido clonando um embrião a partir de células somáticas (células maduras muito diferenciadas, como são as de qualquer tecido: fígado, pele, sangue, etc.) de um adulto, que sem dúvida pode ser um paciente que necessita de um transplante. O procedimento técnico é conhecido de todos: o núcleo de uma célula adulta é submetido a um processo de desdiferenciação até se tornar praticamente numa célula semelhante às embrionárias. O núcleo desta célula é transferido para um ovócito humano, o qual foi previamente desprovido de núcleo, e depois estimulado para que se inicie o desenvolvimento de um embrião.
Quando este se tiver dividido em várias células, pode tomar-se uma delas, que, depois, com meios de cultura adequados, pode gerar células de diferentes tecidos: coração, fígado, pele, sistema nervoso, etc. Estas, uma vez obtidas, poder-se-iam utilizar num transplante para o doador do núcleo utilizado na clonagem.
O método é possível; as consequências médicas, muito positivas; as possibilidades económicas, neste momento, incalculáveis. Portanto, se tudo é tão positivo e se o podemos fazer, façamo-lo. Isto é o que deve ter pensado o Conselho de Administração da Advanced Cell Thechnology, e, em consequência disso, já temos o primeiro ser humano nascido [concebido?] por clonagem nos seus laboratórios.
A única dificuldade para obter tecidos a partir dele consiste, sem dúvida, em que, para o conseguir, é necessário destruir o embrião doador das células mãe, algo absolutamente reprovável do ponto de vista ético. Há também outras dificuldades médicas, como por exemplo a tendência a desenvolver processos cancerosos ou alterações na maturação e crescimento desses embriões. Mas não temos aqui espaço nem sequer para iniciar uma reflexão científica sobre essas anomalias.
No entanto, há uma grande janela de esperança na Medicina reparadora: a possibilidade de utilizar células mãe de tecidos adultos, não de embriões. Recentemente foram descritas diversas experiências que demonstram a possibilidade de obter, a partir de células mãe, células de diferentes tecidos. Isto também foi conseguido a partir de células extraídas do cordão umbilical. Em Dezembro do ano passado na revista Science dois trabalhos que demonstram que células mãe da medula óssea implantadas em animais de experimentação se podiam transformar em células do sistema nervoso. Depois destas experiências, outros trabalhos vieram confirmar essa possibilidade. Por isso, muitos cientistas perguntam até que ponto vale a pena continuar com estas investigações que utilizam células embrionárias, se, para conseguir tecidos e, possivelmente, órgãos, podem ser utilizadas células mãe de tecidos adultos. Num artigo recente de Science, apresentam-se argumentos a favor e contra a utilização de células mãe de tecidos adultos, e, ainda que o debate no ponto de vista biomédico continue aberto, a chave da ética deveria encerrá-lo mesmo antes de que começasse.
Como recentemente dizia o professor Josef Seifert, Reitor da Academia Internacional de Filosofia de Liechtenstein, «numa sociedade que defende os animais e as plantas, é primeiro necessário defender a dignidade da pessoa humana, que se distingue dos demais seres por ser o único a possuir a dignidade por si mesmo». Já há mais de dois mil anos Aristóteles nos recordava que um homem adormecido não deixava de ser um homem, e que outra coisa são, seguinte Seifert, senão homens adormecidos, os embriões humanos? O respeito por essa humanidade nascente, por esses embriões, que nascidos da clonagem querem utilizar na Medicina reparadora, exige que se termine com estas experiências. Este é sem dúvida um dos maiores desafios que se podem colocar a esta sociedade do século XXI.


Justo Aznar, Chefe do Departamento de Biopatologia Clínica do Hospital Universitário La Fe de Valência

In Alfa e Ómega, nº 305