segunda-feira, 24 de março de 2008

Compete a filosofia, e não a ciência, definir o que é pessoa humana

DEBATE SOBRE A AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE BIOSSEGURANÇA

Esteve Jaulent
Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
“Raimundo Lúlio” (Ramon Llull)


Poucos autores da área da filosofia mostraram-se até o momento interessados neste debate. Saliento o fato com estranheza, visto que as noções de vida, pessoa, indivíduo, entre outras, que vêm sendo usadas no debate, são noções filosóficas ou teológicas que não cabem à ciência definir.

A colocação do debate como uma pugna entre a ciência e a religião é errônea

Além do mais, merece ser esclarecido que é historicamente errôneo, como algumas teses ousam afirmar, que a declaração da dignidade inviolável do embrião humano teria uma origem religiosa judaico-cristão e portanto dispensável dentro da ordenação jurídica de um Estado secular e neutro religiosamente.

O erro consiste em pensar que certas noções que se desenvolveram em épocas cristãs dependem essencialmente da fé cristã, ou se baseiam em artigos da fé cristã. Não é exatamente assim. O que se deveria dizer é que a religião cristã apenas forneceu condições favoráveis para que certos conteúdos ou certas noções científicas passassem a ter vigência cultural.

A ciência progride e regride. As verdades que atinge não são definitivas, e não poucas vezes confusas nas definições de certas realidades. Quando no seu progresso a ciência define aproximando-se de verdades que já são reconhecidas e vividas pelos povos aonde impera o cristianismo, é evidente que essas novas descobertas científicas passam a ser admitidas por todos com maior facilidade. O cristianismo não impõe essas idéias; é o próprio pensamento humano que, num solo cristão aonde as pessoas já vivem as conseqüências práticas de um modo de pensar, chega até elas [1].

Com relação a definição do momento em que começa a vida humana ocorre o mesmo. É um assunto difícil, em que a ciência, embora já tenha uma posição formada a respeito do início da vida a partir da fecundação, ainda não proferiu sua última palavra a respeito da humanidade de tal vida. Não obstante, em todas as épocas e tempos pensou-se ser injusto matar homens não nascidos, embora não se soubesse quando a vida ainda não nascida começava a ser um ser humano no seio materno. Aristóteles, por exemplo, dizia que só é permitido o aborto para limitar o número de filhos, e que este só pode ser feito “antes que o feto tiver sensações e vida. Daí que seja necessário determinar – dizia – quando surge a sensação e a vida”.

A ciência sempre teve dificuldades para definir quando começa a vida humana, a vida pessoal. Depois veremos o por que disso. O Direito, também. O Direito romano parece permitir o aborto por considerar o feto como parte das entranhas da mãe. Hoje a ciência já não admite mais que o feto seja parte da mãe, e o direito forjou a figura do “ente de direito” para definir um sujeito de direitos que não seja pessoa.

Quando numa determinada sociedade muitos defendem que a vida humana comece na concepção, é evidente que se o progresso da ciência também caminha nesse sentido, será muito mais fácil que este progresso seja admitido pela totalidade da população. O mesmo ocorreu com outras noções.

A idéia de que todos os homens têm igual dignidade, por exemplo, não é uma idéia religiosa, mas de Cícero, anterior ao cristianismo. Dela surgiu o princípio que nos obriga a tratar igualmente a todos os homens. Os gregos e os romanos não duvidavam que os escravos fossem homens, mas os tratavam de modo desigual. No Direito romano estavam discriminados. A idéia de que todo homem enquanto tal mereça um trato igual impôs-se só na época cristã e após muitos séculos.

Também não é de origem exclusivamente cristã o conceito de imagem e semelhança de Deus. Encontra-se já em Platão e Aristóteles. Apenas a compreensão cristã do que é ser imagem de Deus é de origem cristã, por motivos óbvios [2]. Na época de Constantino o Grande, proibiu-se marcar os escravos nos tribunais com base na idéia de que eram feitos à imagem e semelhança de Deus. Com isto, não se incluiu um dogma religioso na ordem jurídica, mas obteve-se um avanço decisivo em humanidade, graças ao Cristianismo.

Vemos, portanto, que certas noções científicas e políticas passam a ter uma maior vigência cultural devido à influência cristã. As palavras iniciais da declaração de independência dos EUA são impensáveis [3] fora de um contexto cristão; a idéia da universalidade dos direitos humanos também cresceu em terras cristãs; a própria idéia de que o Estado tem de ser laico, não se teria firmado sem a contribuição da Igreja católica [4].

Todas essas noções (de que os homens são feitos à imagem e semelhança de Deus, que devam ser tratados todos igualmente, a universalidade dos direitos humanos da pessoa) de modo algum são dogmas cristãos. São realidades que estão ai, e que talvez num primeiro momento a ciência, o direito, e em geral o pensamento humano, tivessem dificuldades para compreendê-las, mas com a chegada do cristianismo encontraram um terreno mais apropriado para serem entendidas.

A noção de pessoa

Com o conceito de pessoa as coisas correram de um modo diferente. O conceito de pessoa não se originou exclusivamente do filosofar humano, surgiu do debate da filosofia com os dados da fé cristã e da Sagrada Escritura. Sem os novos conhecimentos revelados na fé cristã ninguém teria pensado na noção de pessoa.

Originou-se então de duas perguntas centrais que se impuseram ao pensamento cristão: Quem é Deus? Quem é Cristo?[5] Foi Tertuliano quem usou pela primeira vez a palavra pessoa (prósopon em grego). No teatro grego o ator usava diferentes máscaras para representar os papéis e tornar mais viva, dramaticamente falando, a ação. Os teólogos cristãos perceberam que na Sagrada Escritura Deus se manifesta às vezes como se representasse diversos papéis: exprime-se no plural (façamos o homem segundo a nossa imagem e semelhança); fala consigo mesmo (O Senhor disse ao meu Senhor), etc. Ora, a fé cristã afirma que esses papéis são de fato realidades que dialogam.

Posteriormente, o conceito trinitário de pessoa trasladou-se para o âmbito humano, mas de um modo absolutamente estranho ao espírito grego e latino. A definição de Boécio, que resumia o espírito da patrística e imperou durante boa parte da Idade Média, situa a pessoa ao nível da substância – substância individual de natureza racional, reza a definição – e assim fazendo é insuficiente para explicar tanto a Trindade como a Cristo. Se em Deus há três Pessoas, haveria três substâncias, o que contraria a fé cristã.

Desde Ricardo de S. Victor, a noção atual de pessoa não radica no conceito de substância. Ele a define como sendo uma existência espiritual de natureza incomunicável [6]. Fica situada assim já não mais no plano da substância ou essência, mas no da existência: uma existência espiritual. A teologia escolástica, a partir disso, desenvolveu a categoria da existência, mas a circunscreveu à doutrina da Trindade e da Cristologia, não a estendendo a todas as pessoas. Continuou-se a vincular a pessoa humana à substância.

Segundo o Cardeal Joseph Ratzinger, a teologia elaborou o que a pessoa não é, mas ainda não esclareceu com total clareza o que a palavra pessoa significa positivamente [7]. A direção dos futuros estudos, recomenda Ratzinger, deverá ser pesquisar o que é o espírito: a essência do espírito, explica, consiste em estar em relação. Com efeito, o espírito tem capacidade de conhecer-se a si mesmo e às outras realidades [8] simultaneamente. Poder-se-ia dizer que estar com outro é a sua forma de estar consigo mesmo. Mais ainda, o espírito é capaz de atingir Deus [9]. A pessoa humana é tanto mais ela mesma quanto mais está com o inteiramente outro, com Deus. Hoje, portanto, temos uma definição dinâmica de pessoa: a pessoa é relatividade com a realidade eterna de Deus.

É, pois, a noção de pessoa uma noção difícil que visa expressar uma realidade que não é objeto da ciência experimental: o espírito. Portanto, temos de estar alertas para dois princípios fundamentais: nem corresponde à ciência definir o que é pessoa, nem a Igreja definiu ainda a pessoa de maneira definitiva. Salientemos, portanto, que por tratar de realidades espirituais, a noção de pessoa não é contemplada adequadamente pela ciência, e em conseqüência não compete a ela, nem saberia fazê-lo, definir a noção de pessoa, nem a noção de vida pessoal humana. Compete só à filosofia e à teologia.

Enquanto não se esclarece melhor a noção de pessoa é preciso mover-se e argumentar juridicamente apenas com as noções que se conseguiram forjar e aceitar.

O que se aceita hoje nos campos científico e jurídico?

a) Com os novos descobrimentos científicos, no século XVII, aumentou a consciência de que a vida humana começa na concepção [10]. Hoje em dia a ciência já aceita que o feto humano (usa-se aqui o termo feto para designar também o zigoto ou embrião [11] é um indivíduo humano, isto é, pertence à espécie homo sapiens, a partir da concepção. Que dizer, a ciência já declarou que a vida humana começa na concepção. Todavia, duvida em afirmar se esta vida humana, a de um indivíduo da espécie homo sapiens, é a vida de uma pessoa. Por esse motivo, alguns até aceitam ser lícito matar o feto “por qualquer razão”, e outros até pensam que se pode matar o recém nascido. Ambas as posturas são conseqüência de não se saber com plena certeza quando a pessoa humana está completa.

A ciência aceita também que o processo de desenvolvimento do feto até o nascimento é contínuo, sem qualquer salto ou começo de uma nova fase [12]. Do contrário ter-se-ia de distinguir também outras fases durante a vida adulta. Não se aceita, porém, que este indivíduo humano seja pessoa.

O ponto nuclear do problema, para a ciência, encontra-se na atribuição do caráter de pessoa ao indivíduo da espécie homo sapiens. Definitivamente, a ciência não tem claro o conceito de pessoa. Muitos acham que a pessoa aparece num determinado momento da vida, não durante o estado embrionário, mas depois. Por exemplo, quando estiver completo o sistema neurológico. Ou até depois. Note-se, todavia, que por ser um conceito relacionado com as realidades espirituais, a ciência nunca o terá por claro.

Compreende-se melhor a dificuldade que a ciência tem neste tema tão complexo do começo da vida pessoal, se se repara que ela busca hoje definir “a vida pessoal” – algo que diz respeito a realidades espirituais – exclusivamente com base em características biológicas. Este erro provém de confundir um critério de classificação de indivíduos com uma afirmação sobre o que é tal indivíduo. Confunde-se classificar com definir. Veja-se um exemplo: Existe total certeza de que o presidente dos EUA é inquilino da Casa Branca; portanto, se George Bush é o inquilino da Casa Branca, então ele é o presidente dos EUA. Mas é claro que isso não significa que ser presidente dos EUA consiste em ser inquilino da Casa Branca; é muito mais. Da mesma maneia, o fato de o embrião possuir características biológicas que o classificam como indivíduo da espécie homo sapiens, não significa que ser homem consista só em ter essas características biológicas. É muito mais: como se disse antes, a pessoa radica no ser espiritual.

Pensando encontrar a pessoa apenas observando as características biológicas do indivíduo, a ciência supõe que a personalidade (ser pessoa, homem pessoa) consiste em alguma propriedade que o indivíduo irá desenvolver num determinado momento de sua existência. Porém, neste ponto a ciência comete outro erro, pois não utiliza com suficiente correição filosófica a noção de pessoa. Com efeito, ser pessoa não é uma propriedade, é um modo de ser. Sem pertencer à essência, as propriedades dependem diretamente dela. Mediante as propriedades, a pessoa se manifesta como tal, mas elas não constituem a pessoa. Além disso, só quem já é pessoa pode desenvolver propriedades pessoais e manifestar-se como tal.

É bom lembrar neste ponto que a noção de indivíduo pertencente a uma espécie é uma noção científica, enquanto que a de pessoa, como já foi dito, é filosófica e de origem teológica. Por este motivo a ciência tem dificuldades em compreender que o embrião é pessoa só por ser um indivíduo vivo da espécie homo sapiens, o que é uma afirmação da filosofia – não da religião – apoiada num fato científico. A ciência atesta a existência de um individuo da espécie homo sapiens desde o momento da concepção e a filosofia explica que há uma identidade fundamental entre “pessoa humana” e “individuo da espécie homo sapiens”.

Atualmente a ciência já possui condições de definir a viabilidade de um embrião pela visualização, mediante o microscópio, como de “bolsas” que indicam que o embrião está morrendo. Ora, sabe-se que as células destes embriões inviáveis não servem para qualquer tipo de pesquisa, pois estão a morrer. Só os embriões viáveis, capazes de continuarem a viver é as que serviriam para pesquisa; mas necessariamente deverão ser mortos para se poder utilizar suas células. Portanto, quem desejar fazer pesquisas com células tronco embrionárias vê-se frente a um dilema: não poder usar células de embriões inviáveis, e usar células de embriões viáveis devendo matá-los antes [13].

b) O progresso científico vai-se refletindo com naturalidade nos diferentes códigos do direito [14].

Assim sendo, o direito admite hoje que pessoa [15] é “aquele ser que tem consciência de sua identidade ao longo do tempo [16]”. Pessoas são só aqueles seres que têm interesse em sobreviver, interesse que se fundamenta no desejo de viver, desejo que exige ter consciência permanente do eu ou de si mesmo. Não basta ter uma consciência do eu momentâneo, que surgisse em cada instante; as pessoas devem poder identificar as diferentes consciências instantâneas como sendo consciências do mesmo sujeito e assim vir a ter uma consciência permanente do seu eu. Caso contrário, não se poderiam entender a si mesmos como sendo o mesmo ser ao longo do tempo, condição necessária para poder ter desejos referidos ao futuro e, portanto, interesse em sobreviver. Só os seres pessoais, assim entendidos, podem ter direitos.

Vê-se nesta postura uma conseqüência do erro apontado mais acima de confundir a pessoa com suas propriedades. Segundo ela, o que converte um indivíduo da espécie homo sapiens em pessoa humana são as propriedades da pessoa. Só quem tiver essas propriedades possui os direitos que se reconhecem às pessoas, o primeiro dos quais é o direito à vida.

Além de acompanhar a ciência nesse erro, esta visão jurídica da pessoa, que está vigente hoje em muitas legislações, sem dúvida alguma também depende de uma determinada concepção ética: a ética do interesse. Ocorre que esta ética não apresenta um bom fundamento. Se só se admitir como sendo “sujeitos de direitos” aqueles seres que têm a propriedade atual de ter desejos que impliquem algum interesse, não se explica porque esses interesses conduzem a direitos. Nem se explica a necessidade, universalmente admitida, de ter-se em conta os interesses dos outros.

Segundo a ética do interesse, se não existissem desejos, em ato ou virtuais, então também não existiria qualquer direito. Todavia, não se costuma entender os direitos desse modo. Com efeito, têm-se direitos dos quais às vezes ignora-se até sua existência. Um indivíduo humano possui direitos antes que possa ser consciente deles e antes que possa desejá-los. Os direitos subjetivos fundamentam-se em estados de coisas objetivos, não em fatos subjetivos, como são os desejos, e continua-se a ser titular de direitos subjetivos até mesmo quando se explicita o desejo de não tê-los.

Devido à dificuldade de configurar juridicamente a noção de pessoa, o Direito Positivo formulou a noção de “ente de direito” admitindo modificações tanto limitativas como extensivas à capacidade jurídica. Assim resultaram as noções abstratas de “sujeito de direito”, “pessoa fictícia”, “pessoa jurídica”, etc. passando a ser titulares de direito as associações de pessoas, os municípios, os espólios... e muitos outros “entes de direito” que não são pessoas naturais.

É nesse espírito, que no Código Civil brasileiro põem-se a salvo os direitos do nascituro desde a concepção. Reza assim o art. 2º: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro” [17]. Esta legislação protege o nascituro dando-lhe curatela em caso de morte do pai, admitindo doações a ele, legitimando as pessoas já concebidas no momento da abertura da sucessão para sucederem na vocação hereditária, etc. Acrescentando-se a este princípio o princípio da identidade retrospectiva [18] que se apóia na identidade dos indivíduos antes explicada – a do nascituro e a do nascido, ambos pertencentes à espécie homo sapiens –,ter-se-á como conseqüência necessária a atribuição de novos direitos ao nascituro, sendo o primeiro deles o da sobrevivência do feto.

c) Finalmente, acresce que o constitucionalismo hoje vigente no Brasil exige que a legislação brasileira respeite a Lei Maior que exprime os direitos e garantias fundamentais, por isso o Código Civil brasileiro deve antes recorrer aos princípios fixados pela Constituição.

Desde 1992, forma parte do bloco constitucional brasileiro, como cláusula pétrea [19], o art. 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) a proteção da vida humana dentro ou fora do corpo materno desde a concepção Constituição do Brasil. Se nossa Constituição garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida [20], sabe-se, desde 1992, quando começa este direito.

A própria Constituição nos art. 5º parágrafo 2º [21] declara o princípio de recepção e não exclusão das disposições e tratados e convenções internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil incorporando-os aos direitos e garantias constitucionais.


Conclusão: A lei de Biossegurança [22] é uma lei injusta, discriminadora, tributária de uma ideologia de poder: o poder dos nascidos contra os não nascidos. É também inconstitucional por não preservar o direito dos nascituros


1) Dado que se obtiveram gestações bem sucedidas com embriões humanos congelados por oito e até treze anos, devemos considerar a Lei da Biossegurança como lei injusta por não usar da necessária cautela e moderação, exigidas por um mínimo de justiça, e aceitar como certo algo o que é apenas provável e possível.

2) Como toda lei que exclua de determinados direitos a uma classe de indivíduos da espécie humana, a Lei da Biossegurança está ao menos sob a suspeita – que deverá tratar de refutar – de ser uma lei discriminadora porque exclui uma classe de indivíduos em virtude de características meramente biológicas (raça, sexo, malformação, etc.)

3) Quem se negue a refutar o caráter discriminador da Lei de Biossegurança, coloca-se ipso facto na mesma situação do juiz que in dúbio condena o réu.

4) Os direitos que tem a pessoa adulta são também do feto ou do embrião. A Lei de Biossegurança nega ao embrião o correspondente interesse na vida, o interesse em sobreviver, que é um direito que lhe deve ser reconhecido como direito subjetivo, embora subjetivamente o embrião não possa exigí-lo ainda.

5) A Lei de Biossegurança encontra-se também sob a suspeita de ser tributária de uma ideologia: a ideologia de poder que aspira a assegurar o poder absoluto dos nascidos sobre os não nascidos. Tem a finalidade de impor, sem qualquer obstáculo, os interesses dos nascidos.

Esta suspeita deverá ser refutada, caso contrário a Lei de Biossegurança assegurará na realidade o poder de dispor também sobre os recém nascidos, os meninos de pouca idade ou as pessoas afetadas por uma grave incapacidade, pois muito embora lhes seja permitido viver, apenas estaremos deixando-os viver, sem reconhecer-lhes seu direito à vida.

6) A Lei da Biossegurança no seu art. 5º e parágrafos da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 atribui ao Estado o poder de privar o embrião do seu direito à vida. Este poder é excessivo, pois atribui ao Estado a capacidade de definir algo que nem a ciência nem a filosofia – embora reconheçam que com as suas próprias forças e apenas fornecendo-lhe a mãe nutrição, oxigênio e tempo, o embrião chegará a alcançar o estado de pessoa adulta – até hoje definiram: que tipo de vida seja a vida embrionária. Portanto, é inconstitucional porque não cumpre com o dever político do Estado de tutelar a vida humana mediante a lei civil [23].

7) A Lei da Biossegurança é inconstitucional porque infringe uma cláusula pétrea da Lei Maior brasileira.

NOTAS:

1- Os estudos sobre embriologia surgiram com o aumento da sensibilidade dos microscópios. Karl Ernst Von Baer observou, em 1827, o ovo ou zigoto em divisão na tuba uterina e o blastocisto no útero de animais. Nas suas obras Ueber Entwicklungsgeschiechteb der Tiere e Beabachutung and Reflexion descreveu os estágios correspondentes do desenvovimento do embrião e quais as características gerais que precedem as específicas, contribuindo com novos conhecimentos sobre a origem dos tecidos e órgãos. Em 1839 Schleiden e Schwan, ao formularem a Teoria Celular, foram responsáveis por grandes avanços da Embriologia. Conforme tal conceito, o corpo é composto por células o que leva à compreensão de que o embrião se forma à partir de uma ÚNICA célula, o zigoto, que por muitas divisões celulares forma os tecidos e órgãos de todo ser vivo, em particular o humano. Só muitos anos depois, em 1869, o Papa Pio IX aceitou este fato científico em 1869 e decretou que a Igreja Católica devia defender o ser o humano desde a sua concepção, pois o embrião é uma pessoa humana, e como tal a sua dignidade deve ser defendida pelos católicos de todo o mundo. Não foi imposto como dogma da Igreja. Os católicos seguem desde então esta opinião, e o pensamento humano científico vai aproximando-se a ela na medida em que os avanços da técnica permitem observações mais aproximadas da realidade.

2- Tomás de Aquino fundamentou também a “imagem e semelhança” de Deus em Cícero, que atribui à pessoa humana a espiritualidade, a autodeterminação racional e a liberdade. É em virtude destas propriedades da pessoa humana, diz Tomás de Aquino, podemos dizer que ela é imagem e semelhança de Deus.

3- “Cuando en el curso de los acontecimientos humanos se hace necesario para un pueblo disolver los vínculos políticos que lo han ligado a otro y tomar entre las naciones de la tierra el puesto separado e igual a que las leyes de la naturaleza y el Dios de esa naturaleza le dan derecho, un justo respeto al juicio de la humanidad exige que declare las causas que lo impulsan a la separación. Sostenemos como evidentes estas verdades: que todos los hombres son creados iguales; que son dotados por su Creador de ciertos derechos inalienables; que entre éstos están la vida, la libertad y la búsqueda de la felicidad; que para garantizar estos derechos se instituyen entre los hombres los gobiernos, que derivan sus poderes legítimos del consentimiento de los gobernados; que cuando quiera que una forma de gobierno se haga destructora de estos principios, el pueblo tiene el derecho a reformarla o abolirla e instituir un nuevo gobierno que se funde en dichos principios, y a organizar sus poderes en la forma que a su juicio ofrecerá las mayores probabilidades de alcanzar su seguridad y felicidad”.

4- Demorou muitos séculos a ser implantada, mas foi graças à vida crista, quando vivida conforme o Evangelho, que isso ocorreu. “Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (cf. Mt 22, 21), isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais.” (Encíclica Deus caritas est, de Bento XVI).

5- Tertuliano: afirma que em Deus há uma substância e três pessoas. Posteriormente, Agostinho oscilou entre uma essência e três substâncias e uma essência e três pessoas. A forma definitiva será: uma essência e três pessoas.

6- Spiritualis naturae incommunicabilis existentia.

7- Cf. Ratzinger, Joseph, Dogma e anúncio, Edições Loyola, São Paulo 2007 p. 181-187.

8- No ato de conhecer o outro, a pessoa volta-se para si mesmo e sabe de si mesmo. Projeta-se a si mesmo. A pessoa não só existe, mas ela mesma é a transcendência de si mesmo: quando olha para outra realidade qualquer tem um olhar reflexo para si mesmo. Isto é, possui-se, ao ultrapassar-se estando com o outro. Torna-se ele mesmo, vem a si mesmo.

9- Dando um passo à frente, diremos que o espírito pode atingir o COMPLETAMENTE OUTRO, A TRANSCENDÊNCIA, DEUS. Portanto, podemos dizer: O OUTRO PELO QUAL O ESPIRITO VEM A SI MESMO, EM ÚLTIMA ANÁLISE, É AQUELE INTEIRAMENTE OUTRO AO QUAL BALBUCIANDO DAMOS O NOME DE DEUS.

10- Para um breve resumo do desenvolvimento das concepções sobre o começo da vida humana, cr. N.M. Ford, When did I begin? Conception of the human individual in history, philosophy and science, Cambridge U.P., Cambridge, New York, ecc. 1988, pp. 19-51.

11- Denomina-se até com nomes diferentes as diferentes etapas do desenvolvimento embrionário; todavia, estas diferentes etapas não conferem diferente dignidade ao embrião. Nem a identidade do código genêtico que já está presente desde o momento da fecundação, pode conferir essa dignidade. A dignidade do embrião provém de ser pessoa, que é algo de natureza espiritual e que não se reduz a características biológicas.

12- A maioria dos textos de Embriologia Humana afirmam que o desenvolvimento humano se inicia quando o ovócito é fertilização pelo espermatozóide. Todos afirmam que o desenvolvimento humano é a expressão do fluxo irreversível de eventos biológicos ao longo do tempo que só para com a morte. Todos nós passamos pelas mesmas fases do desenvolvimento intra-uterino: fomos um ovo, uma mórula, um blastócito, um feto.

13- Outra maneira de saber se o embrião é inviável, é impantando-o novamente na mãe. Da. Maria Roseli, brasileira do interior que possuia embriões dela e de seu marido congelados numa clínica de fertilização em vitro em Rio Preto, não permitiu que essa clínica descartasse esses embriões para, segundo a clínica, iriam ser usados para pesquisa. Os embriões levavam oito anos congelados, mas foram implantados no útero de Da. Maria Roseli e assim nasceu Vinicius Rocha Dorti. Nos EUA houve casos de gestação bem sucedida após treze anos de congelamento.

14- Cf. Rhonheimer, Martin, Derecho a la vida y estado moderno, p. 31. O Preussische Allgemeine Landrecht, de 1794 (I,1,10), estabelece que “os direitos universais da humanidade aplicam-se também às crianças ainda não nascidas, desde o momento de sua concepção”. No mesmo espírito, na :Austria, o Allgemeine Bürgerliche Gesetzbuch, de 1811 (22), ainda hoje vigente, e o Código Penal da Baviera em 1813. Em 1803, foi promulgada na Inglaterra, a primeira lei (statute) contra o aborto, equiparando o aborto do “quick fetu” (o feto que já se move) e o homicídio, o que representa uma notável mudança com relação ao Common law; toda a legislação sucessiva está influenciada pelos novos conhecimentos médicos.

15- Na linha do que Ratzinger explica sobre a pessoa espiritual.

16- Cf. Norbert Hoerster, Abtreibung im säkularem Staat. Argumente gegen den $ 218, Frankfurt am Main, 1991. Neste livro se defende a tese de que a proibição tradicional de dar morte a seres vivos humanos não nascidos não se apóia em argumentos racionais, mas preconceitos e tabus herdados de cosmovisões religiosas.

17- Apesar desta formulação contraditória, o Código Civil neste ponto coloca-se na tradição da “paridade ontológica” entre nascituro e nascido. Cf. Bevilaqua e Pontes de Miranda. Este princípio é afirmado claramente pelo Direito Romano, é de caráter geral e está em conexão com a “existência” do nascituro. O art. 725 do Code Napoleón, se afirma implicitamente que o nascituro “existe”: “il n’est pas necéssair que l’individu soi né pour être habile à succéder; il suffit qu’il soit conçu, parce que l’enfant existe réellement dès l’instant de la conception, et qu’il est reputé né lorsqu’il y va de son interêt, suivan la loi [ … D. 5,4,3;1,5,7 e 26, 37,9,10]” (Rapport de Chabot de 16.4. 1803, in P. A. Fenet, Recueil Complet des Travaux Préparatoires du Code Civil, XII/168).Pierangelo Catalano, Os nascituros entre o Direito Romano e o Direito Latinoamencano, Revista de Direito Civil, n. 45, p. 7-15.

18- Quando observamos o ultrassom que nos fizeram quando éramos ainda um feto no ventre da mãe, podemos afirmar: este sou eu. Portanto, há identidade retrospectiva e percebemos claramente que a nossa sobrevivência quando éramos feto ou embrião foi algo bom para nós hoje. Isso significa que muito embora o feto ou o embrião não pudesse dizer “este sou eu”, sim que pode dizê-lo a pessoa adulta, pois os indivíduos são idênticos.

19- O art. 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Constituição Federal, proíbe até mesmo a simples deliberação pelo Congresso Nacional de reforma à Constituição se ela tiver como objeto a abolição dos “direitos e garantias fundamentais” assegurados na Lei Maior.

20- Reza o artigo 5º da Constituição, Título II, dos Direitos e Garantias Fundamentais: Todos são iguais perante a lei, sem distorção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

21- Reza assim o art. 5º , parágrafo 2º: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

22- Conforme o artigo 5º e parágrafos da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, verbis:
“Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados nos respectivos procedimentos, atendidas as seguintes condições”:
I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data de publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisas ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética e pesquisa.
§ “3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997”.

23- O Artigo 5º da Constituição Federal reza: Todos são iguais perante a lei, sem distorção de qualquer natureza, arantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

BIBLIOGRAFIA

Catalano, Pierangelo, Os nascituros entre o Direito Romano e o Direito Latinoamencano, Revista de Direito Civil, n. 45, p. 7-15.
___, As raízes do problema da pessoa jurídica, Revista de Direito Civil, n. 73, p. 38-54.

Ratzinger, Joseph, Dogma e anúncio, Edições Loyola, São Paulo 2007.
___, Fé Verdade Tolerância, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), São Paulo 2007.

Rhonheimer, Martin, Derecho a la vida y estado moderno, Ediciones Rialp S.A., Madrid 1998.
__ , Ética de la procreación, Ediciones Rialp S.A., Madrid 2004.